terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Dante.


Não sei se consigo fazer-te jus, meu menino.
A ti, que te atravessaste na minha vida, numa noite de nevoeiro em que, surpreendentemente, os meus olhos míopes conseguiram vislumbrar-te. Lembro-me de encostar o carro, intrigada por aquele viajante de linhas claras que corria, imprudente, estrada fora. Só tive a certeza que eras tu quando me olhaste, que olhos como os teus não mentem. Tinha-los num tom amarelado, a mirarem direcções diferentes, não fosse alguma coisa escapar-te. Foi um martírio conseguir apanhar-te e trazer-te comigo, no colo, todo tu tremeliques e medo.
A mãe foi difícil de convencer: foi preciso lavar-te, limpar-te as pregas e as orelhinhas, para que te mostrasses em todo o teu esplendor. Se nos primeiros dias ainda estavas amedrontado, entregue à exploração receosa de uma casa demasiado grande, rapidamente mereceste o nome que te dei. Dante. Esse poço de contradições feito gato, nem bom nem mau, um meio-termo de doçura e altivez, de energia e preguiça, de alma preenchido.
Assim te amei, a ti e à tua correria escadas abaixo, quando me pressentias chegar; aos teus beliscões e mordidelas nos calcanhares, se me sentias demasiado atarefada e pouco atenta às tuas acrobacias. Ao novelinho em que te tornavas quando, sem contar, te enroscavas a meu lado, para adormecer. Os olhos semicerrados pela ternura, um sem-fim de companheirismo e amor silenciosos. Assim te criei, a reivindicar o nome de mãe e a querer ter-te como uma, com direito a ciúmes, lições e umas sapatadas valentes quando esgravatavas a terra dos canteiros ou fugias para o terraço, mal se abria uma nesga da porta. Como eras avesso à autoridade e fazias pouco do que te dizia, alertei encarecidamente os restantes membros da família que o terraço era lugar proibido para ti. Achavas-te maior do que o teu tamanho, mais capaz do que as tuas pernitas de meio palmo, explorador afoito dos telhados e do terraço vizinho. Como tal, passaste a ficar da parte de dentro, a olhar lá para fora, a mirar os prédios em frente, as cores do céu e do mar, e o reino que estava para lá do vidro da janela que tanto querias transpor. A verdade, meu menino, é que preferia ter-te comigo, a arranhares-me sem contar, a acordares-me do sono com um ronronar que reclamava aconchego, do que por aí, num telhado qualquer, mais perto de deixares de ser meu.
Mas ontem, que me apanhaste ausente, escapuliste-te e fugiste, terraço fora, narizinho no ar à procura de novas descobertas. Tanto te avisei, meu bicho, que podias cair...


Não pude ver-te, levaram-te antes que pudesse envolver-te nos braços, roubar-te uma mecha de pêlos macios ou um bigodinho, para usar junto ao peito. Ficam-me as marcas das tuas unhas, do teu miar, dessa alegria a encher-me a casa, dessa espontaneidade que não se ensina.
Resta-me fechar os olhos e crer que, quando os abrir, me invades o quarto, fazes duas ou três piruetas e aterras no meu colo, a olhares-me de soslaio, a roubares-me um abraço daqueles, a que te habituei. Os braços à tua volta, os teus olhos nos meus e os teus suspiros de contentamento, até adormeceres.



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